CRÔNICAS

DESABAFO

Eu sou do tempo em que a avenida mais paulista era a São João imortalizada por Caetano na musica Sampa. Eu sou do tempo do bonde, mas já não havia lampião de gás. Vi São Paulo crescer, nadei e naveguei no Tietê. Sou do tempo que se andava centenas de metros para pegar um ônibus e ai daquele que perdia o seu horário e tinha que esperar pelo outro. Como demorava. Não havia roleta e pagávamos a passagem para o cobrador que ficava em pé andando pelo ônibus, cobrando e dando um tíquete de comprovante.O dinheiro ficava dobrado entre os seus dedos separados por valores. Era um artista. Parecia mágica. Sou do tempo em que pipa era chamado de “quadrado”. Sou do tempo que, enquanto moleque, andávamos com o estilingue pendurado no pescoço. Sou do tempo em que pescávamos nos riozinhos da periferia onde morávamos. Sou do tempo em que se podia caminhar a qualquer hora sem medo de ser assaltado. Sou do tempo em que ajudei meu pai a fazer campanha do Jânio Quadros para presidente. Sou do tempo em que balões não eram proibidos e brincávamos à noite, na rua, de pega-pega, puxa-puxa cabelinho, passa anel e roda. Sou do tempo em que a gente via e perseguia vagalumes. Sou do tempo em que não se ouvia falar de drogas. Sou do tempo em que as donas-de-casa se reuniam à tardinha para as fofocas sentadas à mesa onde havia café e bolinhos de chuva polvilhados com açúcar. Sou do tempo onde havia infância, puberdade e adolescência. Sou do tempo em que as mulheres se resguardavam para o casamento. Sou do tempo da pureza e do romance quando namorar era pegar na mão e ficar sentados no banco do jardim ou da praça. Sou do tempo em que o primeiro beijo jamais esquecemos. “Ah, quantas lágrimas eu tenho derramado só em saber que não posso mais reviver o meu passado e as alegrias dos tempos atrás”. Sou do tempo do Regime Militar deturpado em documentários e reportagens encom

Rastreando

O sonho de João era de comprar um automóvel. Afinal se era o sonho de tantos, por que não o dele também? Queria sentir-se melhor com os vizinhos e amigos; gostaria de ser mais reconhecido como alguém que estava vencendo e, acima de tudo, queria levar sua mulher e filhos a passear e visitar os parentes. Lembrava-se constantemente da vida dura que levava quando ainda morava no Piauí capinando a roça e tirando da terra dura o sustento da família. Depois de algum tempo morando sozinho em São Paulo, trabalhando como carregador no Ceasa, conseguiu alugar uma pequena casa em uma área livre de Osasco e pode mandar vir, lá do nordeste, sua mulher e filhos. Seu desejo era de adquirir um carro e juntando dinheirinho daqui e dali, a mulher trabalhando como diarista, as crianças na creche e o mais velho na escola – que tinha como obrigação buscar os irmãos quando terminasse o horário das aulas -, ele conseguiu comprar o seu primeiro carro. Nada de novo, é claro, pois eu dinheiro não dava pra isso. Era um carrinho simples, mas que pra o João era um “último tipo”. João ficou preocupado em como evitar que roubassem o fruto do seu sonho e colocou um alarme no carrinho, Porém esse alarme só dava problemas. Disparava em qualquer horário. Incomodava os vizinhos e ao próprio João. Então ele ouviu falar de rastreador via satélite que, através de monitoramento pela empresa vendedora seu carro estaria sempre seguro, pois se o roubassem seria fácil localizá-lo e recuperá-lo. Dito e Feito. João colocou o equipamento em seu automóvel. Feliz, continuou sua simples vida. Já levava a família para passear, visitava os parentes, ia até pescar com os amigos. Tudo ia bem até que um dia. Sempre tem “até que um dia”. João conheceu, no bar que freqüentava com os amigos, uma moça que lhe agradou demais. Passou a sair com ela frequentemente. Por vezes ficava apenas a conversar dentro do seu automóvel e, por outras, levava-a a um hotel ou motel. Certa vez, após ter bebido além da conta, saiu com a moça e, como estava alto, esqueceu-se do horário de voltar pra casa. Sua mulher, preocupada, e já sabendo como funcionava o rastreador e achando que algo de pior poderia ter acontecido, correu a uma lan house e localizou o veículo. Chamou um vizinho que a levou até onde o carro estava. Bem, o final vocês podem imaginar... A mulher mandou João embora de casa, tomou-lhe o carro e depois de tirar a carteira de habilitação começou a sair, a passear e...
A vida é assim. Quando pensamos que estamos protegendo nosso patrimônio esquecemos que o patrimônio maior é nossa família.


Recado para cronistas

Há muito li em grande jornal de São Paulo uma crônica que acabei recortando, guardando-a e, quando professor do SENAC, eu a lia para os meus alunos.
O título dela era: “Recado para o bolso da camisa”. O que mais chamou a minha atenção foi o “finalmente” dela, quando o cronista dizia: “Quando você estiver mais velho, com barba, bigodes e muita experiência, lembre-se: As oportunidades não devem apenas ser conquistadas, mas muitas vezes oferecidas”.
Fiquei pensativo na época, porém agora, depois de tantos anos tudo faz sentido, muito sentido. No decorrer de nossas vidas aparecem várias oportunidades para o nosso crescimento profissional, pessoal e financeiro, todavia, não nos damos conta disso. Elas vem e vão. Passam por nós sem que se perceba. Quantos não foram os momentos que portas se abriram e não vimos. Quantas foram às oportunidades que passaram e somente depois de algum tempo é que nos lembramos e chegamos a nos arrepender de não a termos aproveitado. O recado daquele cronista era coisa séria. Se eu posso hoje oferecer uma oportunidade àquele que a merece, devo fazê-lo, pois há muitas pessoas capazes, mas que nunca, nunca mesmo, tiveram a chance de conquistá-las, oferecê-las é nosso dever, nossa obrigação, principalmente se temos, em nosso âmago, a humanidade e humildade. O cronista ao qual me refiro deixou nossa companhia há poucos meses. Deixou também um legado de escritos, uma memória e um exemplo. Seu nome? LOURENÇO DIAFÉRIA.
Lourenço Carlos Diaferia (São Paulo, 28 de agosto de 1933 — São Paulo, 16 de setembro de 2008) foi um contista, cronista e jornalista brasileiro. Sua carreira jornalística começou em 1956 na Folha da Manhã, atual Folha de S.Paulo. Como cronista o início foi mais tardio, em 1964, quando escreveu seu primeiro texto assinado. Permaneceu no periódico paulista até 1977, quando foi preso pelo regime militar por causa do conteúdo da crônica Herói. Morto. Nós, considerada ofensiva às Forças Armadas[1].
A crônica comentava o heroísmo do sargento Sílvio Hollenbach, que pulou em um poço de ariranhas no zoológico de Brasília para salvar um menino. A criança se salvou, mas o militar morreu, vencido pela voracidade dos animais. A crônica também citava o duque de Caxias, o patrono do Exército, lembrando o estado de abandono de sua estátua no centro da capital de São Paulo, próximo à estação da Luz. Diaféria só seria considerado inocente em 1979. Durante algumas semanas, a Folha deixou em branco o espaço destinado ao colunista, em repúdio à sua prisão. Depois da Folha, levou suas crônicas para o Jornal da Tarde, o Diário Popular e o Diário do Grande ABC, além de quatro emissoras de rádio e a Rede Globo.[2] Católico, escreveu A Caminhada da Luz, livro sobre dom Paulo Evaristo Arns, a quem admirava. Outra "religião" era ofutebol: muitas de suas crônicas falavam desse esporte — e de seu time, o Corinthians.[2] Desde o início de 2008 Diaféria enfrentava problemas no coração, até que uminfarto o levou, aos 75 anos, deixando viúva (Geíza), cinco filhos e três netos.


Ser feliz

Pela janela ele via a chuva molhando o gramado e todo o jardim que circundava a sua confortável casa. Começara a chover por volta das quatro horas da manhã e, agora às dez horas, de chuva ininterrupta o quintal estava bem encharcado. Ele sabia disso pois tinha sido despertado pelo tamborilar dos pingos no telhado e, instintivamente tinha olhado para o relógio que repousava sobre o abajur. Seis horas de água caindo dos céus fazia pequenas poças de água, principalmente onde a grama era menos densa. As árvores do jardim mostravam seus troncos nus escorrendo a água cujos galhos se vergavam devido ao acumulo do cristalino líquido. Ele a tudo olhava e sorria. De onde estava avistava a estradinha de terra batida que serpenteando pelas colinas e campos chegava até a sua casa, vindo da pequena cidade a poucos quilômetros. Enxurrada formava-se nas laterais do caminho bruxuleando e formando sulcos como se fosse para deixar a marca de sua passagem. Mais ao longe, entre arbustos e árvores, o riacho crescia e começava a ocupar suas margens como que querendo mais espaço conquistar. Quase que sentiu vontade de dançar porque tinha aprendido, quando criança a ver na chuva, a beleza. Lembrou-se que há cerca de um ano enfrentou durante horas, preso no trânsito, chuva igual a essa. Durante horas ficou dentro do carro vendo a água suja subir e subir, invadindo ruas e casas. Foi aí, nesse dia e instante que decidiu ir embora da cidade grande. E assim o fez. Convenceu a mulher e filhos, escolheu a pequena cidade do interior, comprou a casa que ficava afastada do centro e foi-se. As crianças adoraram. Acostumadas ao concreto, do espaço reduzido do apartamento sentiram-se como em um parque. Ele montou seu consultório na cidadezinha sabendo que ia ganhar muito menos, mas apostava na nova vida. Sua esposa foi trabalhar como corretora em uma pequena imobiliária. Absorto em seus pensamentos teve a atenção despertada pela filha que, correndo ao seu encontro lhe dizia, pela primeira vez: Pai, eu te amo!
Ser feliz pode ser, também, uma questão de lugar.

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