Um cavalo chamado Pirata


Parte I

Meu Lugar


Era eu um menino como muitos quaisquer naquela vila na periferia de São Paulo lá pelos idos de 1962. Estava com dez anos de idade. Naquele lugar afastado havia pouquíssimas casas, muitas árvores, riacho, pomares e paz. Muita paz.
Tudo era longe. A escola, a mercearia, o ônibus, o trem. Estradinhas de terra e pequenos caminhos que cortavam chácaras e sítios eram locais por onde andávamos. Um pouco mais ao longe se avistavam as colinas cobertas de vegetação e, mais ao longe, o Pico do Jaraguá. Essa era a montanha mais alta da cidade de São Paulo (hoje é uma reserva florestal e, sobre ela, encontram-se antenas retransmissoras de sinal de televisão, celular e outras). Naquela época era apenas floresta muito maior que hoje. Nos riachos do lugar eu nadava e pescava, caçava rãs, brincava com outros meninos, mas essa já é uma outra história.
Nesse tempo eu lia muitos gibis que trocava com outras crianças. Televisão nem pensar. Só um dos vizinhos, que ficava a cerca de um quilômetro de minha casa, a possuía. Tinha então meus heróis, extraídos das revistas como o Superman, o Batman, e outros do Velho Oeste. Quando dava íamos até o nosso vizinho ver televisão e lembro-me de um seriado de um herói do oeste – Roy Rogers.
Às vezes, à noite, eu colocava um pano nas costas como se fosse uma capa de super-herói e corria nas ruas em volta de minha casa.
Tinha um mundo todinho meu. O mundo de fantasia que hoje, talvez, as crianças não tenham mais ou, se tem, é feito de heróis de videogames. Bem, toda época tem seus heróis. Brincava, sim, com outras crianças de pega-pega, de roda, de pião e outros folguedos, mas isso também é uma outra história. O que quero contar aqui aconteceu numa tarde quando eu voltava da escola. Ao chegar a casa vi, dentro do nosso quintal, uma carroça e um cavalo. Sem saber o que pensar fiquei admirando o belo animal. Já havia visto outros cavalos nas redondezas e, mesmo passando na minha rua, mas igual aquele confesso, nunca tinha conhecido. Era enorme, grande mesmo. Um alazão de causar inveja. Adentrei a casa e, esbaforido, perguntei ao meu pai de quem era aquele cavalo. Meu, disse ele! Ah, se eu pudesse ver o meu rosto com certeza estaria pasmo, com os olhos esbugalhados e com um sorriso enorme. Eu tinha um cavalo!!! Se for do meu pai, era também meu! Voltei ao quintal e, sem medo, comecei a afagar o belo animal e, aos gritos perguntei ao meu pai se ele tinha um nome. Pirata, retrucou ele.
Entendi o nome, mas não entendi o por quê? Pirata? O cavalo tinha os dois olhos; não tinha perna de pau, não tinha venda... Por que Pirata? Deixei pra lá. Eu tinha um cavalo! Agora eu poderia ser um super- herói de verdade! Logo depois entendi porque meu pai havia comprado uma carroça e um cavalo. Ele havia deixado o emprego de confeiteiro numa padaria do bairro e, com o dinheiro, feito essa compra. Ele queria recomeçar sua vida vendendo artigos pelas ruas de bairros melhores usando a carroça e o cavalo. Dois dias depois estávamos, meu pai e eu, (e outros homens que mais tarde vim, a saber, eram vendedores ambulantes também ou tinham pequenos comércio) em cima de um velho caminhão à caminho do centro de São Paulo onde existia (existe até hoje) o Mercado Central. Era de madrugada e fazia frio. Eu nunca tinha andado de caminhão e, aquilo era uma aventura. Chegamos ao local e eu vi muitas pessoas pela rua, uma grande avenida, que gritavam, falavam alto. Umas vendendo e outras comprando produto que se encontrava em caixas de madeira amontoados pelo chão. Algumas caixas depois voltamos ao caminhão onde encontramos os outros homens.
Chegamos a casa, o dia já amanhecia. Meu pai atrelou o Pirata na carroça, colocou as mercadorias, subimos na “boléia” e saímos para vender. Eu era só alegria, mas a melhor parte estava por vir.
Quando voltamos à nossa casa, meu pai descarregou o que sobrou dos produtos e voltamos à rua, porém agora para os locais mais desertos onde fomos buscar capim para alimentar o animal. Eu ficava quieto, admirando tudo aquilo e estava aprendendo. No íntimo eu sabia que o meu pai mandaria eu fazer aquilo, ou seja, buscar capim para o Pirata. Dito e feito! Alguns dias depois eu fui conduzindo a carroça e, mais outros dias eu já montava no Pirata! Sem arreios, sem sela, apenas uma frágil corda amarrada no pescoço dele. À tarde, enquanto meu pai dormia, lá ia eu, primeiro devagar e logo depois eu galopava no Pirata pelos caminhos de terra, subindo e descendo as colinas.
Imaginava-me um verdadeiro cowboy, com roupas, botas, esporas, revolveres a perseguir ladrões de gado e de bancos. Sentia-me, às vezes, um cavaleiro medieval em seu corcel branco, em uma armadura e espadas reluzentes cavalgando para libertar a princesa aprisionada na torre pela bruxa malvada. Que mundo maravilhoso!
Certa vez estava galopando com ele na estrada que liga uma rodovia ao parque florestal quando vi que os homens que trabalhavam à beira dela largaram seus instrumentos ou se apoiavam sobre eles e ficaram admirando a minha passagem em alta velocidade. Como corria aquele animal. Eu me achava o máximo. Um verdadeiro super-homem. Tão pequeno montado em um animal tão grande, dominando-o, domando-o, conduzindo-o. Ah, como eu estava enganado! Era o Pirata que me conduzia. Ele corria quando queria, trotava quando desejava (como eu detestava o trote). Comecei a perceber isso quando, às tardes ao chegar da escola, ele vinha até perto de mim e, com o seu focinho, me empurrava, como se quisesse dizer: Venha, vamos, está na hora! Coloque a corda e vamos passear. Durante muito tempo foi, o Pirata, o meu companheiro de brinquedos, o meu companheiro de aventuras. Um verdadeiro amigo. Certa vez eu caí de cima dele e ele continuou a galopar para dentro da mata. Por sorte não me machuquei e fui atrás dele e, quando percebi, lá estava ele de volta. Vinha ao meu encontro e, chegando perto, encostou sua cabeça em meu peito, cheirando-me como que querendo ver se eu estava machucado. Eu o amava e ele me amava. Eu sentia isso e eu nem sabia o que era amor. Certo dia meu pai comprou uma televisão e, à noite, quando estávamos reunidos na sala assistindo TV, eis quem surge pela porta: o Pirata! Entrou pela casa adentro como que querendo companhia (ou quem sabe também querendo assistir à televisão?) Difícil foi o meu pai tirá-lo para fora. Havia uma escada e eu descobri que se o cavalo quebrasse a perna, teria de ser sacrificado. Uma tarde, ao voltar da escola, o Pirata não estava. Nem ele e nem a carroça. Esperei e, algum tempo depois, vi meu pai chegar sozinho. Corri até ele e perguntei onde estava o meu amigo. Vendi ele, respondeu meu pai. Como? Como podia fazer isso comigo? Comecei a esmurrar o meu pai e chorar desesperadamente até que minha mãe veio me acudir. Dias, semanas, meses se passaram. Nunca mais vi o meu amigo, até que um dia ouvi meu pai comentar com outros homens que o Pirata havia morrido. Entrei em casa e, chorando, fiquei a lembrar de nossas aventuras. Adeus Pirata, adeus meu amigo.



Parte II


A sela


Feliz. Sim eu era feliz. Nada mais eu queria ou importava. Minha família, os amigos, a escola e, sobretudo, o Pirata. Às vezes ficava imaginando como eu poderia ter vivido todos aqueles anos sem ele. Amigão inseparável, companheiro de aventuras e segredos. Lembro-me certa vez, galopando pelas colinas e vales dos rios reparei, ao longe, entre as árvores uma carroça puxada por um cavalo que corria em disparada sem ninguém na boléia a guiá-lo. Estranhando tal cena, apertei os flancos do Pirata com meus pés descalços e, como sempre, somente com uma pequena corda em seu focinho, disposto a alcançar a carroça, galopou em sua direção. Senti que o Pirata percebeu a minha intenção, pois ele também tinha presenciado o fato e, sem que eu precisasse apressá-lo, ele tomou a iniciativa e fomos nós.
Não demorou muito e ficamos emparelhados com a carroça e vi, dentro dela, uma jovem pálida e sem voz devido, com certeza, ao susto que passava. Pirata ficou ao lado do cavalo que puxava a carroça – na verdade, como percebi em seguida, era uma égua. Alcancei o arreio do animal e, pouco a pouco, consegui fazê-la parar. A jovem começou a soluçar. Perguntei-lhe se estava bem quando, nesse mesmo momento, apareceu um homem cavalgando um magnífico corcel baio, cujas crinas e rabo estavam aparados como por uma mão de exímia costureira. O homem se vestia elegantemente, com botas por onde entravam as calças, camisa e jaqueta e um chapéu como nunca eu houvera visto. Rapidamente apeou do corcel, correndo até a jovem, abraçou-a e confortou-a. Vendo que tudo estava bem fiz sinal ao Pirata e começamos a nos afastar quando ouvi alguém chamando: “Hei rapaz”! Não devia ser comigo, pensei. Eu era apenas um menino. “Hei garoto”! Agora é comigo imaginei. Viramos, Pirata e eu, e o homem começou a dizer: -Quero te agradecer porque eu vi tudo o que fez. Se não fosse sua intervenção talvez tivesse acontecido o pior. “Intervenção”? O que será que aquela palavra queria dizer? Eu nem conseguiria soletrá-la. Deduzi que só podia ter sido a minha ajuda. E o homem continuou: -Como se chama? Qual é o teu nome? Manduca é o meu nome senhor. (Na verdade esse era o meu apelido, e é até hoje). -Venha até aqui garoto. Continuou ele. Aproximamo-nos e ele estendeu a mão para mim. Desci do Pirata, não sem algum sacrifício, pois como disse antes, ele era enorme e eu, pequenino, no alto dos meus 10 anos de idade. Trocamos aperto de mãos. Ele disse chamar-se Foster. John Foster e a menina, sua filha Karen. Nomes estranhos matutei,como também era o sotaque dele, mas nada disse e o Sr. Foster continuou. –A égua saiu em disparada com a menina em cima da carroça porque se assustou com uma cobra que apareceu à sua frente.Eu já tinha visto cobras antes e até matado algumas sem saber se eram ou não peçonhentas. Apenas por puro medo. Deduzi que aquele animal não fora criado no mato, ou em fazendas rudes como tinha sido o Pirata e eu. Então, por isso, o medo. O Sr. Foster convidou-me para ir até à sua casa. Devo lembrar aqui que existia, nas colinas próximas ao Pico do Jaraguá, uma enorme casa encravada em meio às árvores do local. Nunca havia me aproximado dela embora já tivesse visto, com muita dificuldade, devido ao difícil acesso, pessoas naquele local. A casa era usada apenas para veraneio, explicou-me ele que era engenheiro agrônomo – mais uma palavra que eu não entendia -, tinha vindo dos Estados Unidos para trabalhar em uma empresa brasileira e usava a casa, às vezes, aos finais de semana. O Sr. Foster amarrou o corcel na parte de trás da carroça, subiu nela e tocou rumo a casa. Eu fui seguindo ao lado. À nossa esquerda havia um rio que parecia que nos acompanhava. Todos em silêncio com exceção, da jovem que de vez em quando emitia um soluço. Logo chegamos. Fiquei deslumbrado com o tamanho do casarão. Era uma casa enorme, muito parecida com aquelas que se vê em filmes de Hollywood quando retratam a Guerra Civil ou Guerra de Secessão ao focalizarem os estados do sul. O terreno onde ela se localizava tinha um pequeno aclive de maneira que se podia entrar pelos fundos da casa adentrando a cozinha e, na lateral esquerda ficava uma pequena escada que dava acesso al Hall principal e as salas. Na frente, abaixo da grande varanda ficavam as garagens que, em épocas mais remotas, eram os lugares onde se guardavam as charretes e arreios dos cavalos e, também, as ferramentas que deviam ser utilizadas por escravos e empregados da fazenda. Talvez eu nem devesse chamá-la de fazenda, mas sim de uma casa de campo, pois lá nada se produzia para o comércio na cidade, apenas havia frutas, muitas e muitas frutas.
Sr. Foster apresentou-me ao caseiro que disse chamar-se Dionísio. Ele morava e cuidava da casa e do pomar com sua mulher e três filhas. Dionísio tomou conta da carroça, da égua, do corcel, que soube chamar-se Oliver II, e do Pirata, deu-lhes água e ração. Pirata perecia-me muito feliz.John era viúvo. Viera ao Brasil apenas para trabalhar e recomeçar a sua vida, pois perdera a esposa recentemente vítima de câncer. Quanta coisa eu estava aprendendo! Ao chegar à minha casa eu teria de consultar o dicionário e o mapa mundi. Karen era sua filha única, tinha sete anos de idade e estudava na cidade. Havia também um automóvel de nome estranho – Studbaker – e outro homem que descobri, era o motorista do Sr. Foster.
Ofereceu-me algo para comer, não sem antes, é claro, prestar toda a assistência para a filha. Notei o que o os cuidados dele com ela era enorme. O mesmo que minha mãe tinha comigo. Amor de pais. Eu estava aprendendo rápido.
Eu tinha que ir embora. Meus pais poderiam começar a ficar preocupados. Despedi-me dele, de sua filha. Dionísio trouxe o meu cavalo. Sr. Foster elogiou muito o Pirata, tendo ficado encantado com ele. Pela sua postura, pela sua inteligência e, sobretudo, pela sua velocidade. Ao montá-lo, John convidou-me a visitá-lo no próximo fim de semana e que eu era bem vindo à sua casa.
Eia, disse eu ao Pirata, e lá fomos nós. Chegando em casa contei toda a história para a minha mãe que, beijando-me e abraçando-me, mandou que eu fosse tomar banho e ir dormir que já se fazia tarde.
Deitado fiquei pensando nessa aventura e desejando que o final de semana chegasse logo.
Dito e feito! Domingo! Já era Domingo! Pedi aos meus pais para não ir à Igreja, como era nosso costume. Minha mãe, que já sabia aonde eu ia, convenceu o meu pai.
Corri até a cocheira onde o Pirata já me esperava. Animal danado aquele! Parece que sabia aonde íamos. Com a corda na boca esperava que eu o arreiasse. Trotamos, galopamos e, enfim, chegamos à casa do Sr. Foster. Ele veio nos receber, junto com a filha com um enorme sorriso. Dionísio recolheu o cavalo e, John, Karen e eu, adentramos a casa. À mesa estava servido o café da manhã pela esposa do caseiro. Uma mesa farta me aguardava. Tantas eram as guloseimas que eu nem sabia por onde começar. Quando terminei, o Sr. Foster chamou-me e, levando-me até a enorme sala entregou-me um presente dizendo: -Manduca, eu ainda não sei como agradecer-lhe pelo que fez, mas reparei que você monta sem arreio nenhum, nem ao menos um cabresto. Tome aqui. Dou-te esta sela e estes arreios como agradecimento. Sei que é pouco, mas quero que saibas também que ganhou um amigo e, um dia, quem sabe poderei recompensar-lhe melhor. Nem preciso dizer a emoção que senti. Meus olhos brilharam, meu coração disparou. Eu havia ganhado um segundo tesouro. Pirata era e sempre será o meu maior tesouro.



Parte III


Adeus ao paraíso


Longo tempo havia se passado desde que os Foster tinham vindo me visitar, conhecer meus pais e, também, dizer adeus, O Sr. Foster decidiu voltar aos Estados Unidos e, eu senti, naquele dia, que nunca mais os veria. Minha mãe havia feito um almoço que mais parecia uma festa. Afinal ela era a maior cozinheira que eu conhecia. Tudo bem que eu não conhecia outras, mas todas as pessoas, amigos e parentes que vinham nos visitar elogiavam seus pratos e deliciavam-se com seus manjares dizendo que nunca haviam provado nada igual. Minha mãe era descendente de alemães, mas que fora criada por portugueses. Ela havia perdido os seus pais na segunda guerra mundial. Ela contava-me dos tempos em que ela trabalhou numa indústria de pára-quedas que iriam servir para os aliados durante a guerra. Meu pai era filho de italianos, nascido no Brasil. E, eu..bem eu era uma mistura de italiano e alemão. Branco com cabelos escuros e olhos azuis. Um belo garoto, assim diziam.
Minha rotina continuava. Ajudada meu pai nos afazeres dele; ia à escola e, é claro, passeava com Pirata pelos campos e colinas do lugar. Tudo estava certo. Tudo estava em seu devido lugar, no entanto não há bem que sempre dure e nem mal que nunca se acabe. Certo dia, cavalgando pelas colinas deparei-me com uma enorme placa presa a uma árvore perto de uma passagem. Quem teria colocado aquilo ali, perguntava-me. Aproximei-me, Pirata e eu, para ler o que estava escrito. “Breve Loteamento” e mais abaixo um endereço e número de telefone. Galopei de volta à minha casa e contei sobre isso ao meu pai. Ele disse-me que já havia visto a placa e explicou-me sobre ela. Disse-me que todas as fazendas e terras do lugar havia sido vendidas para uma empresa imobiliária e que tudo seria transformado em lotes, em terrenos pequenos para serem vendidos. Enquanto papai contava-me isso e eu ia tentando entender vi seus olhos ficarem marejados e, até percebi, uma furtiva lágrima teimando em rolar pelo seu rosto. Disfarçadamente, para que eu não percebesse, ela a enxugou com a manga de sua camisa. Nessa noite eu mal consegui dormir pensando no que ia acontecer com o meu paraíso. Lembro-me que até sonhei um sonho onde os pequenos animais que habitavam o lugar como coelhos, lagartos, cobras, raposas se reuniram e saíram a caminhar igual uma procissão, abandonando suas casas e indo em busca de um novo lar. Presa e predador lado a lado numa estranha comunhão.
Acordei sobressaltado arriei o Pirata e fui até onde estava a placa. Ficando de pé sobre a sela tentei arranca-la da árvore. Não consegui. Os pregos que a seguravam eram grandes e forte era a madeira. Quem chorava agora era eu. O que ia acontecer com o bosque, com as árvores frutíferas, com os riachos, com as campinas onde verdejavam margaridas-do-campo, dentes-de-leão, morangos silvestres, gramíneas onde, por vezes eu deitava e ficava admirando o céu, olhando para as nuvens e tentando dar-lhe formas? A água límpida e clara dos rios onde eu banhava-me escondido de meus pais, onde eu pescava pequenos peixes como carás, lambaris, traíras e cascudos e minha mãe os preparava para mim? As colinas que mudavam de cor na primavera passando do verde habitual para um roxo deslumbrante quando os capins-gordura desabrochavam em flor? A figueira, velha figueira, onde joãos-de-barro, com seus estridentes canto, faziam sua casinha e, todo ano, apareciam novos filhotes? A paineira, grande, enorme paineira que depois de perderem suas folhas, estouravam, arrebentavam suas castanhas e, com o vento a paina que dela se desprendia tingia o chão de branco como se neve fosse?
Tantas eram as perguntas, as dúvidas. O que seria de mim? O que seria do Pirata, meu amigo e tesouro?
Um dia, fatídico dia, que amanheceu cinzento como se o céu chorasse pelo que ia acontecer, vieram as máquinas. Tratores e caminhões invadiram o meu reino encantado. Começaram pelas colinas devastando tudo. Impiedosos, os tratores arrancavam as árvores, os arbustos e, com sua enorme pá empurravam colina abaixo e iam cobrindo o brejo que margeava os riachos, destruindo o habitat das rãs, preás e saracuras. Da janela do meu quarto eu a tudo observava e sentia como se de meu peito meu coração era, também, arrancado. Ao final do dia a figueira ao chão, a casinha do joão-de-barro ainda estava intacta, mas vazia. Os pássaros já a haviam abandonado como se premonizassem a destruição. O caos continua no dia seguinte, e no outro, e no outro e no outro. Assim foi até que nada mais restava a não ser os campos e colinas nus, onde se via apenas a terra vermelha, como um vermelho de sangue pela ferida nela causada. A terra tombada sangrava e eu chorava.
Como se mágica fosse, vieram as casas, vieram pessoas, carros, comércio, ônibus... confusão. Era o progresso, dizia meu pai. Se o progresso era isso, pensava eu, queria viver sem ele. Eu odiava o progresso. Queria meu paraíso de volta, mas sabia que mais nada seria como dantes.
Um dia, ao chegar da escola, não encontrei o Pirata... (contei esse episódio na Parte I).
Mudança... Mudamos desse lugar. Meu pai conseguiu um emprego de zelador em um prédio no centro de São Paulo. Fomos pra lá. Quanta diferença. Eu morava no mundo e, agora, em três cômodos, sem quintal, nos fundos de um prédio onde, ao redor, só havia mais e mais construções, asfalto, automóveis e confusão. Não havia mais campos, colinas, rios, riachos, bosques, animais....mais nada. Percebi que teria que me tornar um homem. Acho que não teria dificuldade em ser adulto, culto e... rude em uma selva de concreto. Esqueceria do Pirata? Do meu reino encantado? Não, jamais esqueceria da minha infância. Eu guardaria tudo na memória para, um dia, poder conta-la aos meus filhos e, quiçá aos netos. Eu fui feliz. Tornaria a ser? Só o tempo diria.

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